domingo, 18 de setembro de 2011

UM CONTO PROSAICO


MATA-MURIÇOCA
Gostava de ficar à noite na frente da TV matando muriçocas com as mãos. Matava em si, na mulher, nos meninos e até nas visitas, se essas fossem um pouco mais chegadas.
Quando não conseguia matar uma no corpo das pessoas, levantava e batia palmas ao léu, até esmagá-la. Se não esmagasse, ficava praguejando e olhando com o canto do olho, pra ver onde ela parava. Se fosse na parede, não esmagava lá, pra não sujar e levar bronca da Paula. Era uma noite de briga quando ele deixava aquele sangue preto na parede. Espantava a bicha e era só ela descolar da parede pra ‘zapt’, uma a menos, uma a mais na mão suja.
Muitas vezes acordava no meio da noite, acendia a luz do banheiro pra ficar o quarto no lusco-fusco e ele enxergar as vítimas. Ia apertando uma por uma no corpo da Paula, depois tirando pro sangue não secar na pele dela e ele levar bronca logo no café da manhã. Passava horas assim. Quando não tinha na Paula, ia pro quarto dos meninos fazer o mesmo serviço. Lá era melhor, porque os meninos só dormiam sem lençol e se tornavam um estacionamento de muriçocas pesadonas de sangue de criança.
Ocorria também de matá-las de manhã, sacudindo as roupas nos cabides e batendo palmas loucamente, enquanto elas voavam baratinadas. Chegava a assassinar cinco, seis numa palmada só, a mão cheia de borrões vermelhos.
No seu aniversário de 50 anos, ganhou da irmã uma daquelas raquetes elétricas, a bateria. Boa ela: matava um monte de uma vez só, nem precisava levantar, era só passá-la pelo ar que as bichinhas se pregavam na grade de metal e morriam torradas, fazendo um barulho enorme e deixando um cheiro esquisito, de carne seca queimada. Se usasse muito, tinha que deixar meia hora pra recarregar e voltar à chacina por mais umas duas horas, até o braço cansar.
Mas começaram os problemas. Não podia passar a raquete pelas pessoas, que reclamavam com medo do choque. A Paula brigava agora mais com ele porque ficavam uns pedacinhos de muriçoca pretos pela casa, em cima do sofá, pregavam nos pés dela, além de aquele barulho atrapalhar a televisão. Um dia um dos meninos encostou a raquete no outro, de mal, e ele passou a noite chorando, a Paula o culpou pela falta de cuidado com o equipamento. E uma noite, enquanto ele passava a raquete pelo rosto da Paula pra pegar uma bem gordinha, ela voou, se pregou na tela e fez um barulho maior que o normal, a Paula acordou assustada e, no instinto, deu com o nariz na raquete, levou um choque e ficou com uma mancha preta uns dois dias, nem pó disfarçava. Passaram uma semana sem se falar, não adiantaram desculpas.
Ele foi obrigado a se desfazer do brinquedo. Mas continua na ativa, no método tradicional. As muriçocas não acabam nunca.
(Imperatriz, 18.09.11)

domingo, 11 de setembro de 2011

NOVO CONTO


ESCRÚPULOS DE SANGUE
Ele, na verdade, queria a irmã dela. Mas a irmã não caiu na rede dele, a mais velha foi mais fácil. Duas saídas e já a tinha levado pra cama, num hotelzinho vagabundo do centro da cidade. E aí começaram os amarramentos.
Aos trinta anos já, a irmã queria um namoro sério e ele foi ficando nessa condição. Começou a frequentar a casa, às noites, depois passou a ir de dia mesmo, os pais dela não se importavam, eram uns ‘coroas legais’, como ele dizia pros colegas. “Acredita que os coroas já deixaram eu comer ela lá no quarto dela?”. Os amigos duvidavam.
Mas a irmã não saía dos seus planos. Queria-lhe muito. Fazia todos os estratagemas para encontrá-la pela casa, ficava esperando chegar da faculdade, a despeito de ver o final de um filme, só para dar boa noite e vê-la entrar naquele jeans apertado que deixava à mostra todas as formas com que ele sonhava de noite e, invariavelmente, acordava molhado.
Dois anos de namoro, a irmã engravidou e tiveram que consumar o casamento, antes que a barriga aparecesse. Casaram no religioso, cerimônia simples, mas todos os parentes próximos lá.
Mudaram pro Mato Grosso, ela passou num concurso para um desses milhares de tribunais. Ele foi acompanhando, como professor de Matemática não teria problemas de se colocar.
O filho chegou e com ele a irmã, que viera passar um tempo ajudando, pois estava sem fazer nada depois da formatura. E talvez conseguisse uma colocação como assistente social, “o mato grosso é uma fronteira a desbravar”, todos diziam na família.
Um dia a irmã teve que viajar para uma diligência de rotina, coisa do serviço. Só uma semana, ela prometeu ao marido.
No terceiro dia, Ronaldo invadiu o banheiro em que Sandra tomava banho. Invadiu, a bem dizer, é um exagero, pois ela deixou a porta aberta. Amaram-se na lajota fria, no estreito corredor em frente ao do vaso e à pia, a porta escancarada e a criança chorando, com certeza de fome. Dali até a irmã chegar, amaram-se todas as noites, na cama dela, pois a dele não podia desonrar. Era um homem com escrúpulos de sangue, não podia destratar a dignidade da mulher.
Quando Cíntia chegou, encontrou uma casa em perfeita harmonia. Dali a dias, Sandra anunciou que não ia mais embora, que ia tentar mesmo a vida no Mato Grosso, a fronteira a desbravar, e que ela podia viajar tranquila sempre que precisasse.

ITZ, 11.09.11

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

NOVO CONTO DA ANA PAULA


Abro mais uma vez o espaço deste blog para postar um conto da Ana Paula, minha ex-aluna de Laboratório de Produção de Texto, do Curso de Jornalismo. Os contos da Ana têm algo de muito singelo e muito emotivo, que me fazem lembrar muitas das autoras da nossa literatura que foram mestras em deslindar a alma feminina, principalmente.
Ei-lo:

O DONO DO BEIJO

Eu só o tinha visto umas três ou quatro vezes, quando ainda éramos crianças. Mas desta vez foi diferente.
Cheguei. Cumprimentei. Ele me olhou com olhos de homem. Nada senti. A não ser um ligeiro desconforto. Beijou-me docemente na face. Um beijo quente e demorado.
Conversamos por algum tempo. Disse que gostava dos meus olhos. De admirá-los. Sorri timidamente. Ele continuava a me olhar de modo atrevido. E isso me desajeitava. Mas nada, nada eu sentia. Apenas fingia não perceber.
De repente o silêncio. Ele fitou os olhos em mim. Eu não o encararei. Ele foi chegando perto. Mais perto. Sentiu meu cheiro. O cheiro de meus cabelos. Roçou o nariz em meu rosto e trouxe seus lábios em direção aos meus. Eu quis recuar. Não recuei.
Desta vez senti. Senti meus pés fora do chão. Foi bom. Na verdade foi incrível! Tal qual beijo com feitiço.
Quando abri os olhos percebi o quanto sua melanina me atraia.
Seus lábios, então, me fizeram um novo convite. Fui chegando perto. Mais perto. Senti seu cheiro. Rocei o nariz em seu rosto. Levei meus lábios em direção aos dele. Até nossos olhos se fecharem novamente. Ele nem pensou em recuar.
Depois de algum tempo nos despedimos e ele não mais me procurou. Foi como se seu prazer estivesse apenas em meu encantamento. Mas de forma inusitada e imensamente amável, tempos mais tarde, ele me mostrou que não foi.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

UM CONTO NOVO...


TAPA NA CARA

- Quem bate esquece, doutor, mas quem apanha guarda pro resto da vida.
- Como foi que aconteceu?
- A morte?
- Não, o tapa na cara.
- Foi em 85. Uma besteira. Eu tava no serviço, roçando minha roça quando os capangas chegaram. Me pegaram pelo braço e me botaram dentro da D-20 dele. Não disseram nada, mas eu já sabia que eram jagunços dele. Me levaram pra casa dele, que ficava numa outra fazenda, perto daquela onde eu botei minha roça. Me empurraram pra fora do carro e eu caí, já nos pés dele. Ele me levantou pelo braço e, com o dedo na minha cara, me disse que aquela terra era dele, que eu era um ladrão de terra vagabundo, que eu fosse pra puta que pariu. Me deu um tapa na cara e me empurrou. “É só um recado”, ele disse, e entrou. Aí os capangas me levaram de volta.
- E ficou nisso?
- Ficou. Eu peguei minhas coisas, peguei a mulher e os dois meninos e saí de lá. Fui morar na casa do meu sogro, perto da beira do rio. Lá montei uma quitandinha e fui fazendo a vida. Mas nunca me esqueci daquele tapa na cara, não senhor.
- E você fez o quê?
- Até ontem, nada. Só comprei uma faca de limpar porco e todo dia, de tardinha, eu afiava ela na pedra, perto do jirau.
- Nunca teve vontade de ir procurar ele?
- Tive, mas nunca fui. Mas sempre pedi a Deus que botasse a oportunidade no meu caminho. Vinte anos eu pedindo, Deus nunca me ouviu. Mas ontem aconteceu. Acho que foi o diabo que criou a oportunidade.
- Mas por que justamente na frente da criança?
- Eu não planejei nada, mas não podia perder a oportunidade. Toda vez que eu saía de casa, levava a faca dentro da calça, metida na cintura. Tinha a esperança de um dia encontrar ele e acertar as contas. Ontem eu vinha subindo a rua e encontrei ele sentado na cadeira, de costa pra rua, com a menina no colo. Eu não pensei duas vezes: tirei a faca da cintura, cheguei rápido nele e enfiei no pescoço.
- Um golpe só?
- Um golpe só, meti a faca até o cabo e fiquei segurando firme, olhando ele de cima, sem afrouxar a mão. Ele foi soltando a menina e o braço amoleceu. A menina ficou gritando “vovô, vovô”.
- Ele disse alguma coisa?
- Nada. Só ficou me olhando com o olho duro, parecia uma estátua com a cabeça pra cima.
- E tu?
- Também não disse nada. Só fiquei olhando ele com o olho de ódio. Queria que ele morresse vendo a minha cara. Queria que ele se lembrasse e soubesse por que que ele tava morrendo.
- E depois?
- Depois que ele ficou todo vermelho do sangue e amoleceu o corpo todo, eu puxei a faca e saí correndo.
- E foi se esconder?
- Não. Fui pra casa avisar a mulher e esperar vocês.
- E agora o senhor vai ficar preso pelo resto da vida.
- Tá certo, doutor. Eu não reclamo. Sou velho, não demoro mais. Minha vida ganhou sentido de novo.

LAGO DA PEDRA, 03.09.11