sexta-feira, 17 de junho de 2011

A PARTE 2 DO CONTO DE BAIXO...


A MOÇA DO PIANO

Não sei se disse, mas sou representante de um produto japonês de massagem. Viajo o país inteiro apresentando ele em todo tipo de local: feiras, farmácias, reuniões beneficentes, vou até de casa em casa, quando a cidade é muito pequena. É um massageador que as pessoas usam nas costas, nos pés, nos braços, onde tiver uma dorzinha ele chega e resolve. É isso que o panfleto diz. O panfleto traz a foto do japonês que inventou o aparelho, um baixinho atarracado e com metade da cabeça já careca, vestido de quimono. Quem compra o aparelho ganha dois potes de gel. O gel é que evita que a ponta do aparelho, que é uma bolinha que fica tremendo na pele, machuque as pessoas. Mas já me disseram que o sucesso do aparelhinho do japonês é mesmo porque ele é usado como vibrador. Não quero nem saber, é ele que me faz viajar, conhecer muitos lugares e me fez comprar minha casa, meu carro e criar meus filhos até agora.

Adoro viajar. Fico às vezes duas, três semanas fora de casa. Gosto do cheiro de amaciante das camas de hotel, com lençóis limpinhos, dos cafés da manhã, sempre cheios de coisas, dos sorrisos das recepcionistas e da curiosidade delas pra saber o que é que existe naquela mala enorme que eu carrego pra cima e pra baixo. Vou quase sempre de avião, porque a firma do japonês arca com todas as despesas. Esse produto é bom mesmo, porque o japonês tem um monte de representantes como eu, espalhados nos cinco continentes, vendendo, vendendo o aparelhinho massageador-vibrador em todas as línguas que se possa imaginar. Uma vez por ano, o japonês faz uma conferência de vendas, um encontro pra todos nós dizermos quanto vendemos. São números impressionantes. Mas mais impressionantes são os lugares em que esses encontros acontecem: Malibu, Caribe, Costa do Sauípe, Himalaia, Honduras, Jamaica, já houve até um em Havana, apesar de o japonês ser um capitalista que odeia ouvir falar em socialismo. Mas no caso de Havana, o motivo foram as boates...maravilhosas! Aliás, esses encontros são mesmo só pra farra, os tais números são apenas pra mascarar as farras que o japonês gosta de proporcionar pra nós, que aumentamos a sua fortuna pessoal em dezenas de milhões de dólares a cada 365 dias.

Viajo por todos os estados do Brasil. Acho que já refiz o mapa territorial umas vinte vezes, sem exagero. Posso estar, num mês, no meio da floresta amazônica, daí a quinze dias no frio de Curitiba e daí a mais uns dez dias numa cidadezinha litorânea do Ceará. No Brasil, somos apenas três representantes e não existe essa de área demarcada de cada um, não. Eu posso me deslocar pra onde eu bem entender, em qualquer direção, sem dar satisfação a ninguém, nem mesmo ao japonês. O japonês, aliás, nunca quer saber por onde andam seus representantes. Só quer saber do seu caixa tilintando. Ao final de cada mês, enviamos o nosso mapa de despesas pra um escritório que ele tem em Tóquio e eles nos ressarcem as despesas dez dias depois, no máximo.

Uma noite estava em Floripa e ouvi uma música no piano-bar do hotel. Eu cheguei de uma visita a uma academia de ginástica, na verdade um enorme centro de estética que faz de tudo. Eles estavam interessados em vender o aparelhinho e queriam saber se podíamos fazer uma parceria e tal. Eu expliquei que não fazemos parcerias, não damos descontos, não vendemos a prestação. O que podemos fazer, no máximo, é pegar um cheque para 40 dias. É o máximo que o japonês nos permite facilitar. E também não vendemos em grandes quantidades, no máximo duas caixas por compra, o que dá 48 maquininhas. O japonês é meio esquisito no quesito adaptação a novas estratégias de marketing e vendas. É isso e o panfletinho de que já falei, e só. Mas talvez seja esse mesmo o segredo do seu sucesso. Orientais...

Foi um dia cansativo, aquele da academia. Convenci, enfim, os donos da academia a ficar com as duas caixas, recebi um cheque para vinte dias e voltei pro hotel. Pus a malona sobre a cama e desci pra beber um chope, que minha garganta já pedia uns. Pois estou entrando no bar, que estava com uma luzinha meio morta e um punhadinho de gente: um casal num canto no maior love, um grupo de quatro jovens bem loiros, três rapazes e uma menina, e eu. No fundo do bar, sob um pequeno holofote, uma moça ao piano. Tocava de cabeça meio baixa e o cabelo grande e caído não deixava ver muito bem o seu rosto. Ouvi aquela melodia, olhei para a moça no canto e não tive nenhuma dúvida: era ela.

Tantos anos já. Pelo visto, ela deve ter deixado de tocar na igreja. Senão não estaria ali, pensei. E já não era a jovenzinha que carregava o caderninho e estava sempre de vestido. Naquela noite, pelo contrário, ela estava vestida num tailleur preto, uma calça meio justa, dava para ver as pernas grossas encherem o tecido nos lados da coxa. Quantos anos deveria ter? Só que eu não visitava a cidade onde nos conhecemos já se iam 15 anos. Naquela época, ela devia ter uns dezessete anos, presumo, então agora ia pelos 32, 33, mais ou menos. Mas ainda era encantadora. E, para meu desespero, estava tocando cada vez melhor, com mais suavidade do que nunca.
Sou um apaixonado por música, mas um músico frustrado. Nunca consegui aprender a tocar nenhum instrumento, apesar de já ter frequentado aulas de tudo o que é tipo de coisa: violão, piano, baixo, guitarra, os de sopro quase todos. Também fui coralista na igreja onde fiz a primeira comunhão e a crisma. Talvez essa frustração por tocar um instrumento tenha me levado a ser quase um alucinado por música. Tenho uma cdteca de fazer inveja a muitas rádios consideradas boas. Só de piano tenho uns 150 álbuns.

Ela tocava divinamente. Os dedos deslizavam sobre as teclas pretas e brancas do piano. O ritmo perfeito. Até a postura dela era perfeita: a coluna ereta lhe dava um ar altivo, uma delicada sinuosidade. Criei coragem e sentei mais perto, levando meu chope. Fiquei bem pertinho dela, escutando aquela música, abobalhado. Dava pra sentir o perfume dela de tão perto que eu estava. Dava para ver seu peito subindo e descendo da respiração. Dava pra ver que ela estava notando aquele cara bem perto, olhando pra ela com cara de tarado ou de abestalhado, não sei o que ela pensou.

Quando a música parou, não me contive a bati palmas. Os caras loiros da mesa me acompanharam, o casal não. Quis perguntar o nome dela, mas uma vergonha absurda tomou conta de mim. A única coisa que me permiti dizer foi que eu tinha adorado, adorado. Ela deu um sorriso complacente, pegou a pasta de folhas de saco plástico e se foi.

Nunca consegui me perdoar por não ter, naquela hora, chamado ela pra mesa, dito que eu a conhecia dos tempos da igreja, perguntado o seu nome, dito que eu adorava a música que ela tocava desde que ela tinha uns dezesseis, dezessete anos e me encantava lá na igreja. Que eu ia todos os domingos, todos os domingos, religiosamente, por causa dela. Ficava ouvindo os cantos daquelas bandas chatérrimas por causa dela. Aguentava, por causa dela, ouvir o pastor dizer que eu vivia em pecado e que minha alma ia arder eternamente no inferno. E que ela me devia ao menos o nome, por todos esses anos que eu passei ouvindo a música dela ressoar na minha cabeça, de quando em vez, nos horários mais absurdos. Ela me devia ao menos o nome...

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